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BRAZILIAN WAX - UMA EXPERIÊNCIA IMERSIVA E ABRASIVA NUMA ENCRUZILHADA DE MUNDOS
Brazilian Wax nasce da residência artística EMERGE Carnaval de Torres Vedras 100 anos concebida e produzida pela equipa da EMERGE, que convidou Gustavo von Ha (artista brasileiro não residente em Portugal) para criar trabalhos visuais e performativos, no âmbito deste contexto carnavalesco e da vivência na cidade, e João Silvério para a curadoria da residência e da exposição. Daqui pode logo depreender-se que “todo este projeto se configurou numa prática coletiva: o artista, a estrutura de produção e a curadoria”1. O artista trouxe na bagagem duas peças-chave do seu atelier – uma cópia menor da Pietá, de Miguel Ângelo, e um molde fálico similar a um biberão em barro, rememorando as ridículas palavras de Bolsonaro difamando a oposição num passado recente e trágico para o Brasil. Embora estes elementos forneçam pistas daquelas que, segundo o curador, são três linhas fulcrais que suportam a estrutura do projeto – “relacionando temas com a herança cultural europeia, os modelos instituídos pelas estruturas de poder e sujeitos à crítica popular, e a ironia derrisória, porventura divertida, que associa o vernáculo e a cultura popular a questões de género e de identidade.”1 -, o artista não trazia uma estratégia conceptual para Torres Vedras, afirmando que “o discurso e o trabalho nascem juntos – é quase como (…) corpo e alma”2.
A primeira decisão foi não fazer um comentário óbvio e meramente temático ao Carnaval – “eu cheguei, a cidade estava já começando a ser transformada (…) e eu fiquei pensando em não falar sobre o Carnaval, porque seria muito literal. Então, eu pensei sobre as estruturas e estratégias que circulam esse universo, e que estão do lado de dentro, para produzir alguns trabalhos, enfim, dentro das minhas próprias estratégias artísticas, dos meus limites (…). Um brasileiro falando do Carnaval, eu acho que ia esvaziar um pouco e, no meu trabalho, eu gosto sempre de dar margem para muita ambiguidade porque o trabalho tem que ter autonomia, tem que funcionar”2.
Dois pontos importantes anteveem-se neste início: o carácter político do artista e a dissonância entre o Carnaval brasileiro e o Carnaval de Torres Vedras, bem como entre ambas as culturas, geografias, realidades e ficções. O primeiro é central no percurso de Von Ha; para o artista, os atos de ver, pensar e criar são intrinsecamente políticos – “Aí volta aquela questão toda: quais são os limites? O que é que é arte? O que não é? Qual é o papel do artista? Eu sempre me faço essa pergunta: qual é a minha atuação exatamente? É sempre política por natureza, porque tudo o que a gente faz no âmbito coletivo é política – a interferência na polis, na cidade, é política pura (…). Isso é a parte que é uma questão inerente ao meu trabalho, que é completamente político, apesar de ter uma coisa assim alucinada, meio divertida até, meio meme”2. Esta característica basilar reflete-se tanto na construção de várias camadas de significados e materializações, como nas metodologias usadas, relacionadas com disciplinas como antropologia e sociologia, a par dos cruzamentos entre correntes da história da arte e da mistura entre estes e os meios de comunicação atuais, reavivando as reflexões de Walter Benjamin sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, desta feita, deslocando-as para a era digital.
O processo de trabalho inicia-se com uma pesquisa histórica no Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras, onde começa a edificação conceptual do museu imaginário que já se antevia pela cópia grafitada da Pietá, decorrendo, simultaneamente, uma pesquisa de campo numa completa imersão na cidade que se bifurca na observação do nascimento do Carnaval e na descoberta das ‘pichagens’/superfícies grafitadas que abundam na cidade, mapeadas, registadas pelo artista e, posteriormente, transpostas em bordados, pinturas e no néon que traz à memória a Pop Art. Ambos os caminhos extravasam os limites da arte e denotam uma marca identitária e de assinatura – ou a subversão destas -, tanto nos corpos como nas paredes. Na primeira linha, intensifica-se o binómio exposição/ocultação e a inversão ou revelação da identidade durante o Carnaval, por ser um evento pagão de excesso e de exceção, e, usando as palavras de João Silvério, um “momento em que se torna urgente ser o outro de si mesmo”1.
Surge, então, o segundo ponto referido acima – “comecei (…) a observar as pessoas, as vestimentas, (…) e comecei a ver um certo padrão, que se repetia tanto em cores, quanto em texturas; e aí, sim, veio o encontro do meu Carnaval brasileiro com o Carnaval daqui. A primeira coisa é sobre a relação com as peles.”2. Enquanto no Brasil, por ser Verão, os corpos estão quase desnudos e adornados – à semelhança dos povos indígenas, que inspiraram essa celebração -; em Torres Vedras, sendo Inverno e defendendo-se o slogan de ‘Carnaval mais português de Portugal’, a música é maioritariamente brasileira, mas por dentro não existe brasilidade e a pele (exposta lá) é cá coberta por outras peles que imitam animais, numa espécie de camuflagem. Além disso, o artista apercebeu-se de que esta relação com a pele ultrapassa o escopo do Carnaval e marca (por vezes, subreticiamente) a nossa vivência quotidiana em sociedade – “Então, eu comecei a cruzar todas essas informações (…) sobre essas camadas das peles, as peles que ocupam a cidade, as peles que ocupam a gente, as peles que a gente habita, o que a gente quer mostrar, o que a gente quer esconder”2. As palavras do curador, em sintonia com as estratégias conceptuais e artísticas de Von Ha, reforçam a ideia – “O corpo é um território político onde ocorrem mudanças e transições que se põem perante o Outro. O corpo é, assim, o lugar da afirmação da celebração e da camuflagem”1.
Um encontro inesperado com dois torrienses abundantemente tatuados – Ana Rafaela Duarte e Milton Faria – culminou no vídeo onde aparecem a tapar as tatuagens com maquilhagem, que, segundo o artista, ligou tudo e resolveu conceptualmente o projeto. Este vídeo-performance envolve não só a questão da inversão de uma marca identitária através da oscilação entre ocultação e revelação, mas também uma estratégia artística de Von Ha de se tornar co-autor da sua própria obra ao incluir a intervenção da comunidade. A maquilhagem que sobrou serviu para pintar peles fake de onça e zebra, umas com padrão camuflado – destacando-se La Danse como referência ao quadro de Matisse -, outras gerando uma camuflagem semelhante à pele humana. Descobrimos, mais tarde, que esta base é Von Honey – um cosmético que só existe numa vitrine da exposição, num anúncio que circula em autocarros e no imaginário (e desejo) de quem o vê, e que é multiusos, servindo também para limpar a casa. Esta ironia e desconstrução de comportamentos padronizados da sociedade percorre toda a exposição e está latente na abrasividade do título Brazilian Wax – a depilação exportada do Brasil e nomeada nos EUA -, cuja cera é usada em algumas obras.
O ambiente das duas salas de exposição, com a profusão de materiais, técnicas e referências poder-se-ia enquadrar no binómio ‘apolíneo/dionisíaco’ designado por Nietzsche para explicar o nascimento de uma obra de arte. Com o excesso dionisíaco da diversidade de obras já mencionadas e da subversão do espaço expositivo ao pintar uma sala de verde Chroma Key – a sala transforma-se num set de filmagens e o visitante torna-se co-autor ao usar o efeito de Instagram Chroma-Ha -, contrasta o aspeto despojado, ritualístico, de uma quase sacralização ironizada, do monólito preto inspirado por Stanley Kubrick e dos dois biberões fálicos (lembrando santos) – um em bronze e outro em cerâmica com motivos de azulejos portugueses -, envolvidos por uma espécie de molduras barrocas e férteis em significados (um associado ao Brasil, aludido anteriormente, e outro lembrando a cerâmica das Caldas da Rainha). O monólito contém igualmente a ambiguidade de significados inerente a Von Ha, ao “dar essa dica do que é aquele ambiente, e do que pode vir a ser (…) a partir do seu próprio monólito preto. Quando você pega o aplicativo e olha para aquilo, são dois monólitos conversando e criando um outro mundo”2, e, simultaneamente, ecoando o paradoxo existencial que o objeto (e a vida na Terra) encerra.
A vertente colaborativa do projeto, a multiplicidade de camadas, significados e reminiscências/renascimentos, e a liberdade criativa e interpretativa proporcionada ao visitante/participante, sem prejuízo para a lógica interna da estrutura conceptual, transformam Brazilian Wax numa obra aberta e a residência artística “vai ecoar durante muito tempo, porque impactou muito”2 a produção do artista. Prova disso é a extensão do anúncio da cosmética Von Honey (com Carol Marra), que será lançada na Umbigo #84.
Brazilian Wax está patente na Casa Azul da EMERGE até 1 de abril e contará com uma visita guiada pelo curador, no próximo dia 25, às 16h30.
(1) Silvério, João. (2023). ocultação e chromaqui: como se fosse uma máscara (texto curatorial);
(2) Conversa com Gustavo von Ha na Casa Azul, 11 de março de 2023.